Quando a neblina chegou, o mar era seu único companheiro por dois dias. O cinza úmido engoliu o barco, adensando-se pouco a pouco. Para João, era só mais uma neblina forte, uma das muitas que ele havia pego nas suas aventuras. Vivia de navegar. Transportar veleiros de uma marina a outra. Dessa vez, era um belo barco. Dava gosto de navegar. Um Benetau Océanis 400. Um veleiro oceânico de 40 pés, fabricado em 1996, em estado de novo. Seu cliente havia comprado o barco na Argentina e contratado João para levá-lo a Florianópolis.
Cinco dias antes da neblina o engolir, ainda no Iate Clube de Puerto Madero, João fez uma revisão geral no Da Vina, o nome atual do veleiro. Ergueu o barco no travel lift, fez uma cuidadosa inspeção do casco, leme, hélice e quilha. Por dentro, observou qualquer sinal de osmose, de infiltração ou rachadura e deu uma geral no motor. Não queria ser pego de surpresa no caminho até Santa Catarina.
Bem equipado, o Da Vina contava com um completo sistema de navegação, com radar, sonda, GPS, piloto automático e anemômetro. Dois de cada um. O antigo dono era quase tão paranóico com segurança quanto João. Certamente devia ter feito longas travessias com o barco. Era a única razão para investir tanto em equipamentos.
Depois de se certificar que o veleiro suportaria bem a viagem, João tratou de torná-la confortável. Com o dinheiro que seu cliente lhe deu para despesas, comprou duas garrafas de um bom Malbec argentino, provisões secas e frescas e voltou para o hotel. Ia dormir bem essa noite, para estar atento durante toda a saída do Prata. Sonhou com tango e tangas. Em breve estaria em casa de novo, tomando sol na praia e com bons 30 mil reais a mais no bolso.
No dia seguinte, ao raiar do sol, João e Da Vina já estavam velejando. Os panos totalmente içados, caçados, aproveitando o pouco vento na saída do iate clube. Esperava mais vento ao seguir o curso do Prata rumo ao Atlântico. Menos de duas horas depois de sair, a velejada começou a ficar interessante: ventos de 30 a 35 nós e um bom rendimento do barco. Claro, era um Benetau, bem construído, bem equipado. Um barco como João teria um dia, tinha certeza.
A roda de leme respondia bem, as velas trimadas e as catracas ao alcance do timoneiro. Nesta travessia era essencial saber o papel de cada cabo, de cada moitão, de cada manilha. Sozinho, João não podia errar. E não iria. Para começar, nunca foi de arriscar. Correr regatas não era o seu forte. Não gostava de estressar os barcos, levá-los ao limite. E essa característica era justamente o que os clientes gostavam tanto em João. Contratá-lo para transportar um barco era seguro. Ele não ia exagerar, não ia "dar um pau" no barco.
Depois de quase 14 horas velejando, o Da Vina atracou no Yatch Club Uruguayo, em Puerto de Buceo, em Montevideo. João dormiu no barco mesmo, cansado da longa travessia entre as capitais. Tinha muita água pela frente, mas estava contente. Sonhou com carros velozes, bons vinhos e belas mulheres.
Sorria ao acordar, já com o sol alto no horizonte. Estava tarde para vencer mais uma etapa de sua viagem, mas não se importou com isso. Fez uma boa refeição, se despediu dos marinheiros uruguaios que conhecera e partiu novamente. Faltava pouco para sentir o cheiro de maresia.
Quando finalmente passou pela Isla de las Flores, três horas depois de partir, sentiu a brisa marinha no rosto, acompanhada de uma sensação de estar em casa, no seu elemento. Havia uma neblina leve, típica da região. Para ganhar velocidade, João moveu a roda do leme, ajustando o curso para Este-nordeste. As velas encheram mais e o barco começou a se comportar como o excelente cruzeirista que era, enterrando a proa nas ondas mais altas, singrando até as vagas mais violentas.
Com o piloto automático ajustado, João entrou na cabine para preparar algo para comer e ler um pouco. Descansar da roda do leme, do sal, do sol e do sereno. Sentou-se, comeu com calma e pensou em quão fácil seria a travessia. Mais um dia inteiro de velejada e estaria no Brasil. Ficaria feliz em ver o Farol da Barra do Chuí, o primeiro sinal brasileiro visível do mar para quem vem do Sul.
A noite daquele dia foi tranquila. Bons ventos, o barco quase que o tempo todo em piloto automático, nenhum sinal de risco no radar - João tinha muito receio de encontrar um navio grande na sua rota e a possibilidade de colisão, ainda que ínfima, era assustadora.
O dia seguinte teve um pouco de neblina ao amanhecer, que logo se dissipou. Da roda do leme, foi possível ver baleias e um cardume de pinguins. Ao longe, avistava a bela paisagem do nordeste uruguaio. O Farol de La Paloma, já bem próximo à fronteira com o Brasil. Mas os ventos amainaram e o Benetau perdeu rendimento. O Nordeste que tocava o barco numa orça apertada, obrigando João a cambar constantemente se transformou num Sul razoavelmente fraco. Tão fraco que nem parecia Sul. Coisas do aquecimento global, pensou o marinheiro.
João caminhou até a proa, armou o balão assimétrico, recolhendo a genôa no enrolador. Agora o barco era um ponto vermelho e laranja para quem olhasse de terra. Toda atenção era necessária. A grande área vélica da vela de proa poderia causar um acidente numa rajada mais forte ou numa alteração brusca de rumo. João seguiu assim, cansado de tanta concentração, até começar a entardecer. O pôr-do-sol veio encontrá-lo na proa do Da Vina, recolhendo o balão e desenrolando a genôa. Agora, durante a noite, o piloto automático iria tocar o barco. Melhor descansar.
No cockpit, um piquenique: uma garrafa de Malbec, torradas com caviar. Sevruga, claro. Cortesia do cliente, que concordara em bancar as despesas de alimentação da viagem. Depois de três taças, João sentia o efeito entorpecedor do vinho argentino, mas ainda assim reagiu à nova mudança na direção do vento. O Sul fraco virou um Nordeste fraco. Pequeno ajuste no rumo, na trimagem das velas e o barco estava pronto para seguir sozinho.
Seguiu, sozinho, rumo à neblina. João sentiu a umidade quando se despia para dormir. Uma neblina forte, estranha. Fechando a cabine hermética, João se separou da umidade e dormiu um sono inquieto. Sonhou com escuridão, com brigas e que caia do céu no meio de nuvens que não acabavam mais.
Acordou cansado e abriu a gaiúta e a porta para o cockpit. A neblina estava forte lá fora e a umidade invadiu a cabine. Era dia, mas tudo estava tão cinza que podia ser noite. João podia ver piscar as luzes de navegação no meio da umidade cinza. Mais nada. Não enxergava o Farol de Chuí, embora o GPS indicasse que estava bem próximo dele.
João seguiu navegando pelo GPS, torcendo para a neblina dissipar o suficiente para enxergar Santa Vitória do Palmar, a Praia do Hermenegildo, alguma coisa que fosse familiar. Mas nada. A neblina seguia ficando mais densa, mais densa, mais cinza, mais úmida.
Pelo seu relógio, já seria meio-dia, mas o disco do sol não vencia a neblina. João não vencia a neblina, por mais que apertasse os olhos, franzisse o cenho para enxerga um pouco mais que os enroladores na proa. No relógio, o tempo foi passando devagar. No oceano, mais devagar ainda, numa calmaria irritante.
Mas o velejador sabia se controlar. Não era a primeira vez em que ficava sozinho e entediado no mar. Bastava não brigar com o mar. Ninguém ganha essa briga. Entrou na cabine, pegou um livro e começou a ler, tentando despreocupar-se. Contudo, de vez em quando, olhava para o GPS e o radar. O barco avançava lentamente. Lento demais para o seu tamanho. Lento demais para os ventos que normalmente sopram naquela região.
O dia passou devagar, mais devagar do que o avanço do barco no meio da densa neblina. João foi dormir preocupado. Era seu terceiro dia no mar, o quarto velejando e mal havia chegado ao Brasil. Se o vento tivesse ajudado, já estaria passando a divisa entre os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, na Barra do Mampituba. Estava longe, ainda.
Depois de um sono nada reparador, João acordou mais cansado do que o dia anterior. Abriu a porta da cabine para o cockpit e a neblina invadiu o interior do barco, como se fosse uma entidade com vida própria. Tudo ficou acinzentado aos olhos de João. As telas dos eletrônicos, o inox do fogão, a sua própria pele. A umidade forte demais incomodava os olhos, como se João estivesse tentando mergulhar sem cerrar as pálpebras.
João podia sentir a neblina. Entendeu a velha hipérbole: aquela era uma neblina que se podia cortar com uma faca. E o Benetau começou a cortá-la mais e mais. O vento começou a soprar com mais força, o suficiente para João ouvir o barulho do casco singrando o mar. O suficiente para o barco adernar à sotavento e o velejador sentir o caturro.
Em vez de animar-se, João preocupou-se. Não havia modo de enxergar à frente. Aproximou o rosto dos eletrônicos. Sabia que eles funcionavam pelo calor que o LCD emitia, mas não conseguia ver nada. Nem colando os olhos no display era possível enxergar algo. Nada era visível agora. Só um cinza que cobria tudo. Tudo mesmo.
A impressão que João tinha era de que havia ficado cego. Tateou pelo barco, procurando as catracas. Encontrou a que julgava ser do grande e seguiu o cabo até o stopper para soltar a vela. Recolheu o pano completamente, e, sempre tateando, fechou a capa. Fez o mesmo com a genôa. Estava sem velas. Não podia ficar assim, à deriva. A neblina estava deixando ele nervoso. Jamais, em todos os seus anos de vela, tinha feito isso: baixado todas as velas sem ligar o motor. Felizmente, depois da segunda tentativa, o ronco e o cheiro do diesel encheram o ar.
Mas, ir para onde? Não tinha como se orientar, como seguir navegando. João tinha certeza de que os eletrônicos estavam em modo de alarme. Ou seja: se algum obstáculo aparecesse no radar, um sinal sonoro o avisaria. Se a profundidade chegasse próxima a três metros, também soaria um alarme. Com o motor na velocidade mínima, João continuou avançando. Muito, mas muito devagar. Cortando o cinza.
Seguiu nessa faina, cego, por sabe-se lá quantas horas. Não tinha como enxergar o relógio e perdeu a conta dos bips que o Omega dava nas horas cheias e meias-horas. Ligou todas as luzes. Caso fosse noite, seria mais fácil de um navio ou outro barco notá-lo assim. Tudo o que as luzes faziam era colorir um pouco o cinza. De azul, de verde, de vermelho, de amarelo. Dependendo do tipo da lâmpada.
Ele nunca havia visto uma neblina assim tão densa. Ninguém havia visto uma neblina assim. João só sentia o barulho do motor e do casco, o cheiro do diesel e o tato de suas mãos na roda de leme. Não via nada, não ouvia outra coisa. Manteve o barco no rumo com um cabo amarrado num dos raios do timão e foi dormir. Ou tentar dormir. Passou a noite em claro. Mesmo com os olhos fechados, o cinza úmido lhe perseguia.
Não conseguiu dormir, mas manteve-se no camarote de popa por quatro horas, descansando o corpo. Precisaria do descanso quando saísse da neblina. Agora, João contava os bips do relógio. Oito bips depois de ter deitado, levantou-se para o cinza lá fora. Nenhuma mudança na situação.
Ao longo do dia, ou da noite, não sabia ao certo, os ruídos foram ficando mais fracos. Como se a neblina engolisse até mesmo os sons. O ronco do motor foi ficando fraco, a ponto de João se perguntar se ele estava ligado. Uma leve vibração no cockpit indicava que sim. O barulho do casco nas ondas também foi diminuindo de intensidade até sumir completamente. João não via e não ouvia.
Ele se perguntava o que estava acontecendo. Se estava louco, doente, se fora acometido por cegueira e surdez inexplicáveis. Se a neblina não tivesse chegado devagar, acreditaria nessa hipótese. Mas não. O mundo não era negro e sem luz, como o mundo dos cegos. Era cinza e úmido. E quieto, assustadoramente quieto.
O silêncio e a cegueira cinza foram tomando conta de tudo à volta de João. Mesmo o tato nas coisas era embotado pela umidade cinza. João começou a bater-se nas anteparas, a tropeçar nos cabos. Sabia que o diesel não duraria para sempre. Se estivesse avançando a meio nó, já deveria estar em Florianópolis, caso tivesse tomado o rumo correto. Mas aquela neblina tão densa parecia acompanhar o barco onde quer que fosse. João tentou acelerar ao máximo o motor e seguiu assim por dois dias, tentando escapar da umidade gris. Sem sucesso.
Depois de sete dias sem dormir, sem comer direito por não conseguir encontrar as coisas, sem ver, ouvir e sem poder sequer tatear, João encontrou uma solução: amarraria uma bóia na cintura e pularia ao mar, para, dentro da água, abrir os olhos e ver alguma coisa ou ouvir o barulho do motor, sentir a água fria no seu corpo. Ele precisava disso, de ter a certeza de havia algum sentido funcionando. Tato, visão, audição. Qualquer deles servia.
João colocou o plano em execução. Arrastou-se pelo cockpit até o lugar onde achava que haveria uma bóia circular de resgate. Não conseguiu sentir nada, mas agarrou um cabo ou algo que parecia cilíndrico e maleável e seguiu até a borda do barco. Seu corpo chocou-se contra o que pareceu ser o guarda-mancebo. Passou um pé e depois o outro e pulou. Sentiu um choque leve nos pés e depois no resto do corpo. Abriu bem os olhos, mas não havia nada ali. Nenhum ruído, nenhuma cor senão o cinza. A umidade era maior, era verdade. Mas era como se ainda estivesse no meio da neblina, e não imerso no mar. Abriu a boca e sentiu um leve gosto de salgado. Mas era cinza. Tudo cinza.
João largou o cabo que tinha nas mãos e deixou-se afundar devagar. Primeiro abriu bem a boca e tentou respirar. O cinza úmido e agüado entrou boca adentro, invadiu a garganta e a traquéia, encheu os pulmões. Foi ficando mais e mais cinza. Por dentro e por fora. Agora, tudo era cinza. Ou quase tudo. As sinapses e os neurônios, antes de desligarem por falta de ar, se rebelaram contra o cinza. E dispararam informações para todos os lados. Formas, sensações, cores. Sonhos vermelhos, verdes, azuis, amarelos. Calor, frio, choques elétricos, cheiros e sons. Tudo ao mesmo tempo. Afundando no meio do cinza sem fim, João sorriu um sorriso colorido e morreu feliz.
[Ouvindo: White Unicorn - Wolfmother - Wolfmother].