As pálpebras de João pesavam dois quilos cada. Cada olho tinha um metro cúbico de areia arranhando a córnea. A cada piscada, os olhos se fechavam mais e mais tempo. A madrugada não era mais sua amiga. Talvez fosse o tema do trabalho, chato e pouco desafiante. Talvez fosse apenas sono.
Mas um ruído diferente no corredor chamou a atenção e descarregou um pouco de adrenalina no corpo de João. Um barulho de patas de cão no piso de cerâmica. As unhas compridas de um animal. Mas João vivia sozinho, nem cachorro, nem filhos, nem esposa. Ele e a madrugada e só.
Uma virada cautelosa na cadeira de espaldar alto, olhos fixos na porta do escritório para o corredor. Nada. O mesmo silêncio de sempre no apartamento vazio.
João volta a se concentrar na conta caixa, da DRE, no balanço da empresa fictícia. Os resultados foram satisfatórios? A lucratividade atingiu as metas? Perguntas chatas com respostas chatas. E o ruído de patas novamente no corredor.
Agora a cadeira se vira de sopetão para João dar de cara com um cachorro. Um doberman preto, quieto, olhando para João. Olhos avermelhados na escuridão do corredor.
O que esse cão faz ali, como entrou, será feroz? As perguntas já não são tão chatas. São altamente relevantes para João, que busca e busca as respostas sem sucesso.
– Pode voltar a trabalhar, não quero atrapalhar – diz o cachorro, com voz tranquila, que não parecia combinar com o porte do animal.
Um cachorro que fala? É só o que faltava para João, sempre acompanhado nas madrugadas por alucinações, anjos e demônios. Estava velho demais para cães que falam. Continuou olhando o doberman.
– Está estranhando minha voz? Bastante singular, porque essa voz foi você quem me deu.
"É claro", pensa João. "O cachorro que fala e está no meu corredor não fala e nem está no meu corredor. Está na minha cabeça".
– Exatamente – retruca o bicho, como se lesse o pensamento de João.
– Você ouviu o que eu pensei? – pergunta João em voz alta. Alta demais para a madrugada.
– Eu sou o seu pensamento. Estou em seu pensamento. Eu sou. Eu existo.
"É só que me falta. Além de falante, o cachorro é metido a filósofo", racionaliza João.
– O filósofo é você. É você quem fala, quem arrasta as unhas no corredor escuro. É você que tem os olhos vermelhos na escuridão. Você é eu, e eu, você. E ambos somos. Só.
– Escuta aqui, Rex, vê se me deixa em paz, então. Preciso terminar isso aqui. Xô, vai embora! Passa!
– Não funciona assim. Eu sou fruto do seu pensamento. Das sinapses cansadas de pensar em gestão, em planejamento estratégico, em propostas comerciais e retornos financeiros. Eu sou o seu eu mais sincero, o seu quadrúpede interior. A besta que estava adormecida no fundo do cérebro e que saiu quando a mente ameaçou dormir de tanto tédio e sono.
– Tá, e como eu faço para você ir embora? – João perguntou.
– Você acorda e pronto.
Foi a senha para João notar o óculos torto caído sobre o teclado do computador, sentir a dor das teclas F6, F7 e F8 que marcavam sua testa, o torpor no braço que esticava-se sobre o mouse pad de forma pouco natural.
Levantou-se, foi ao banheiro e para a cama. E sonhou com números, com contas caixa, DREs e planilhas. E, pela manhã, entre uma colherada e outra de granola, disse a si mesmo que era bem melhor sonhar com cães filósofos.
[Ouvindo: Ya no hay héroes - Loquillo y Trogloditas - Tiempos Asesinos]
3 comentários:
O que não faz um MBA à distância, não? :)
Passeando pelo Santo Google encontro teu blog e não resisto a ler um pedaço do teu livro em aberto.
Interessante teu conto. Por acaso costumas ler sobre psicanálise?
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