Alguém devia ter difamado Ana P., pois certa manhã, sem que tivesse feito qualquer mal, recebeu a notícia de que seu salário seria descontado em 1%. A notícia veio com o aviso de que pouco poderia ser feito. Era preciso buscar a Repartição para evitar o desconto.
Ana P. não compreendeu na hora as implicações do desconto. Não conhecia a Repartição e não estava familiarizada com os processos, embora fosse letrada e versada, mulher vivida e de perspicácia acima da média.
Ana P. buscou informações, tentou compreender o que todo o processo significava e porque a Repartição tinha que mexer em seu salário. Porque o salário era dela, disso não havia dúvida. Ela trabalhara, ficara com dor nas costas, com a testa marcada por rugas de expressão, perdera compromissos por causa das horas longas no escritório. Merecia o salário. Não 99% dele, mas sua totalidade.
A Repartição, o que havia feito? Os homens de roupa escura, de rostos pesados e semblante raivoso, haviam trabalhado como ela? Ou haviam passado seus dias dedicando-se a tarefas fúteis, a combater batalhas inúteis, a discursas às paredes? Era para isso que queriam 1% de Ana P. Não só de seu salário, mas de seu tempo, Um centésimo da sua vida naquele mês.
Foi com esses pensamentos que a Sra. P. se dirigiu naquele dia à Repartição.
- Bom dia, gostaria de protocolar uma carta solicitando que não seja efetuado o desconto de 1% sobre meu salário.
- Não trabalhamos desta forma - respondeu o homem atrás da mesa.
- É muito simples: tenho aqui duas cópias da minha solicitação. O senhor assina uma, dizendo que recebeu a carta, e fica com a outra cópia, para que não esqueça de não descontar o valor.
- Não assino nada.
- Esse é um padrão usual no recebimento de documentos importantes - retrucou Ana P., que sabia dos meandros da burocracia e das Repartições. Ela havia, um dia, sido uma burocrata.
- Não posso assinar. Não assinamos para ninguém.
- Mas vocês assinaram o recebimento da carta de meus amigos que estiveram aqui ontem.
- Não assinamos, não. E além disso, o seu pedido para que eu assine significa que a senhora não confia em mim. E aqui, nós confiamos nos trabalhadores.
Neste momento, é bom explicar. A Repartição servia, ou deveria servir, para defender os trabalhadores como Ana P. Seu propósito era negociar percentuais, benefícios, vantagens, para que Ana P. e seus colegas fossem felizes e trabalhassem com tranquilidade. Mas nem a Sra. P. nem seus colegas acreditavam que isso acontecesse. As batalhas da Repartição não eram as batalhas deles. Os burocratas lutavam contra forças míticas, como a Alca e a globalização. Desafiavam deuses, como GWBush e FHC. Ana P. e seus colegas queriam coisas simples, como horas-extras, bancos de horas e direito a um plano de saúde. Com psicanalista, claro.
- Você está me chamando de mentiroso - complementou o homem raivoso da Repartição.
- Em momento algum eu disse isso! - alterou-se Ana P. - Tudo o que quero é que você assine a minha carta.~
- Não posso assinar. Não vou assinar.
Por horas, dias e semanas a discussão prosseguiu. Ana P. não soube se havia sido descontada em seu salário. Não viu a sua folha de pagamento, porque estava envolvida em leis e tábuas e mandamentos que pudessem corroborar sua necessidade de que assinassem a carta. Mandava faxes, recebia documentos, lia-os avidamente. Até que foi desanimando e deixou-se entregar como seu parceiro de processo do outro lado do oceano, Joseph K. Quando Ana P. desistiu, no mesmo momento "as mãos de um dos senhores seguraram a garganta de K. enquanto o outro lhe enterrava profundamente no coração a faca e depois a revolvia ali duas vezes".
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