25 de abril de 2007

Alice

O coelho já estava sangrando quando Alice passou pela rua. Agachou-se.
- O que houve? - Alice perguntou, amparando a cabeça do coelho com a mão esquerda, os olhos cheios de lágrimas.
- Um motoqueiro e me baleou. Já passou um monte de gente por aqui e ninguém me atendeu. Só você parou - falou, agonizante, o coelho.
- Meu Deus, ninguém parou?
- Ninguém. País das Maravilhas uma ova. Desde que aquela rainha maldita assumiu o poder, as coisas só pioram.
- Não fale, não fale. Você vai piorar. Uma ambulância, por favor! - Alice gritou, sem resultado.
- Ninguém liga para um coelho. Maldita a hora em que desafiei o Chapeleiro Maluco. O cara manda nas bocas de chá por aqui.
- Meu Deus, você trabalhar pro Chapeleiro Maluco? - horrorizou-se Alice, seus dedos de classe média largando rapidamente o coelho ferido.
- Não, moça. Eu sou de outra facção. A gente tava tentando tomar uma das bocas dele, no morro do Ás de Paus. Aí deu essa merda braba. É por isso que eu vou morrer.
- Meu Deus, e a rainha não faz nada? Os traficantes de chá se matando nas ruas e ninguém faz nada?
- Liga não, moça - diz o coelho, tossindo uma bola de sangue - É assim mesmo. Na hora que a violência bate na porta, as meninas riquinhas que nem você se apavoram. Mas depois de umas passeatas, umas palestras e umas prisões, todo mundo se esquece do problema.
- Eu não sou ass...
- Claro que não - interrompe o coelho, condescendente.
Com uma olhada final para Alice, o coelho sorri, os dentes cheios de sangue, e abaixa lentamente as orelhas. Os olhos vermelhos ficam opacos e o corpo amolece na calçada da Zona Sul do País das Maravilhas.
Alice levanta e olha para os lados, atrás de um soldado da Rainha de Copas. Ninguém parece dar bola para a cena. Alice segue até a delegacia mais próxima e avisa do corpo. Tomam seu depoimento, anotam seu dados, endereço, telefone. Alice se sente uma cidadã que cumpriu com o dever de qualquer cidadã.
Quando volta para casa, tem uma história e tanto para contar às amigas. Enquanto tomam um belo chá, comprado no morro do Ás de Paus.